http://www.dx.doi.org/10.14718/ACP.2019.22.1.5
JOSEANE DE SOUZA* 1
MARIA APARECIDA CREPALDI2
* Laboratorio de Psicología de la Familia, Salud y Comunidad (Labsfac), Departamento de Psicología, Universidad Federal de Santa Catarina (UFSC), Campus Universitario, Trindade, CEP: 88040-970, Florianópolis-SC, Brasil. Teléfono: (55 48) 3721-2435.
josisol@hotmail.com
1 Trasformare Clinica de Psicologia, Balneário Camboriú, Brasil ORCID: https://orcid.org/0002-6144-6773
2 Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5892-7330
Recibido, enero 3/2018;
Concepto de evaluación, abril 20/2018;
Aceptado, mayo 16/2018
How to quote this article: De Souza, J. & Crepaldi, M.A. (2019). Emotional and Behavioral Problems of Children: Association between Family Functioning, Coparenting and Marital Relationship. Acta Colombiana de Psicologia, 22(1), 95-106. doi: http://www.dx.doi.org/10.14718/ACP.2019.22.1.5
Resumo
Este estudo teve como objetivo descrever o funcionamento familiar, a relação conjugal e a coparentalidade em famílias, além de identificar as associações entre essas variáveis com problemas emocionais e comportamentais em crianças de 5 a 11 anos. No total, foram entrevistadas 50 mães cujos filhos seguiam tratamento psicológico nos Serviços de Saúde Pública. Os instrumentos utilizados foram FACES IV, a Entrevista de Identificação Familiar, o SDQ, a Escala de Relação Coparental, o Inventário de Percepção Parental (PPI) e a Escala Floreal. Os resultados indicam que o funcionamento familiar emaranhado se encontra correlacionado com sintomas de hiperatividade e com problemas de relacionamento e de conduta na criança; enquanto uma boa relação mãe-filho correlaciona negativamente com sintomas de hiperatividade e dificuldades emocionais; as práticas educativas negativas correlacionam positivamente com problemas de comportamento, emocionais e sintomas de hiperatividade. Finalmente, o funcionamento familiar emaranhado teve maior repercussão nos sintomas de problemas de conduta e de relacionamento com pares. Os resultados sugerem que diferentes tipos de problemas emocionais e comportamentais da criança são influenciados e influenciam diferentemente a dinâmica familiar, e que o funcionamento da família está associado com a saúde mental da criança.
Palavras-chave: funcionamento familiar, coparentalidade, infância, saúde mental, psicologia da família.
Abstract
This study aimed to describe family functioning, marital relationship and coparenting in families, and identify the associations of these variables with the emotional and behavioral problems of children aged 5 to 11 years. 50 mothers whose children received psychological treatment in Public Health Services were interviewed. The instruments used were: FACES IV, Family Identification Interview, SDQ, Co-parenting Relationship Scale, Parent Perception Inventory (PPI) and Floreal Scale. Results showed that enmeshed family functioning was correlated with hyperactivity symptoms, relationship problems, and conduct problems of the child. Good mother-child relationship was negatively associated with symptoms of hyperactivity and emotional difficulties. Negative educational practices were positively correlated with behavioral problems, symptoms of hyperactivity, emotional and behavioral problems. Entangled family functioning had greater repercussion on symptoms of behavior problems and issues in relating with peers. Results suggest that different types of child's emotional and behavioral problems are influenced and influence family dynamics differently. Findings show that family functioning is associated with the child's mental health.
Keywords: family functioning, coparenting, child, mental health, family psychology.
Resumen
El presente estudio tuvo como objetivo describir el funcionamiento familiar, la relación conyugal y la coparentalidad en familias, además de identificar las asociaciones entre estas variables con problemas emocionales y comportamentales en niños de 5 a 11 años. En total, se entrevistó a 50 madres cuyos hijos seguían tratamiento psicológico en los Servicios de Salud Pública. Los instrumentos utilizados fueron el FACES IV, la Entrevista de Identificación Familiar, el SDQ, la Escala de Relación Coparental, el Inventario de Percepción Parental (PPI) y la Escala Floreal. Los resultados señalan que el funcionamiento familiar enmarañado se encuentra correlacionado con síntomas de hiperactividad y con problemas relacionales y conductuales en el niño; mientras que una buena relación madre-hijo correlaciona negativamente con síntomas de hiperactividad y dificultades emocionales; y las prácticas educativas negativas correlacionan positivamente con problemas de comportamiento, síntomas de hiperactividad, y problemas emocionales y de conducta. Finalmente, el funcionamiento familiar enmarañado tuvo mayor repercusión en los síntomas de problemas de conducta y de relación con pares. Los resultados sugieren que diferentes tipos de problemas emocionales y comportamentales del niño son influenciados e influencian diferentemente la dinámica familiar, y que el funcionamiento de la familia está asociado con la salud mental del niño.
Palabras clave: funcionamiento familiar, coparentalidad, infancia, salud mental, psicología de la familia.
Introdução
Atualmente é conhecido que a criança, quando exposta a muitas situações estressantes, apresente algum sofrimento mental devido à falta de condições para o enfrentamento das mesmas e de compreensão dos fatos, podendo esta condição repercutir por longo tempo. Os transtornos mentais que tiverem início na infância e não forem tratados podem resultar em prejuízo funcional na vida adulta (OMS, 2001). Achenbach e Edelbroch (1979) apontam duas categorias para os problemas de comportamento: internalizados e externalizados. Os problemas de comportamento internalizados são aqueles caracterizados por preocupação em excesso, retraimento, tristeza, timidez, insegurança e medos e são frequentemente manifestados em transtornos como depressão, isolamento social e ansiedade, ou seja, são os sintomas de problemas emocionais. Os comportamentos externalizados são aqueles que envolvem impulsividade, agressão física ou verbal, agitação e provocações e são citados como problemas de comportamento. A saúde mental infantil compreende os problemas de comportamento e os problemas emocionais. Dados epidemiológicos sobre a saúde mental infantojuvenil, no Brasil, apontam alta prevalência de desordens psiquiátricas (Murray, Anselmi, Gallo, Fleitlich-Bilyk & Bordin 2013).
Os estudos sobre as relações familiares geralmente estão baseados na Teoria Sistêmica Familiar. O conjunto de características do grupo familiar, que englobam: compreensão, flexibilidade, afetividade e formas de comunicação, é chamado de funcionamento familiar, embora a sua estrutura seja multidimensional (Olson, Gorall & Tiesel, 2011). A família é definida como um sistema em constante interação e transformação, cujo funcionamento é regido por regras, normas e funções próprias, considerando também cada um dos seus membros (Minuchin, 1990). Segundo a teoria sistêmica estrutural (Minuchin, 1990), um funcionamento familiar adaptativo é baseado nos seguintes critérios: limites geracionais claros, definições de papéis e funções que levem em conta as diferenças de gênero e de poder. O autor considerou adequado o funcionamento familiar no qual houvesse clareza de fronteiras entre os subsistemas. Com base neste critério, apontou que os dois extremos são indicadores de patologia, ou seja, as famílias em que os limites são difusos, famílias emaranhadas e as famílias desligadas em que os limites são rígidos. Assim, o aparecimento de problemas emocionais ou comportamentais da criança pode ser visto, na perspectiva sistêmica, como uma resposta às dificuldades de enfrentamento dos estressores que acometem a família ao longo de seu ciclo de vida, afetando a dinâmica relacional e o funcionamento familiar.
Os pesquisadores procuram identificar quais os fatores de risco, presentes no ambiente de famílias brasileiras, para os problemas do comportamento infantil (Murray, et ai, 2013; Sá, Bordin, Martin & Paula, 2010). Os fatores de risco apontados por esses autores são: vivência de violência doméstica, uso de punição física, ideação suicida da mãe, violência conjugal física grave contra a mãe, embriaguez do pai/padrasto, influência dos pais e dos amigos para utilizar drogas, dificuldades de relacionamento familiar (pais e irmãos), baixa escolaridade dos cuidadores, baixo suporte emocional em casa durante a infância, pais usuários de álcool, divórcio dos pais e falta de proximidade materna. Os fatores de risco são maiores para o desenvolvimento de problemas de condutas entre crianças/adolescentes criados na ausência do pai ou quando ocorre a violência entre o casal e/ou em relação aos filhos (Bordin, Martin & Paula, 2010).
Vilhema e Paula (2017) conduziram um estudo de revisão da literatura sobre problemas de condutas (PDC) na infância/adolescência e observaram que, no Brasil, a prevalência aponta altas taxas de PDC em crianças e adolescentes brasileiros, sendo em média de 3.6% para Transtorno de Conduta e 3.5% para o Transtorno de Oposição Desafiante. Pesquisa realizada com população clínica no Brasil caracterizou as dificuldades de 59 pais/ cuidadores que buscaram atendimento psicológico para seus filhos com problemas de comportamento. Essa revelou que as principais dificuldades dos pais/cuidadores foram quanto às habilidades envolvidas no estabelecer limites (usam o bater como prática educativa e não têm consistência) e na comunicação (Bolsoni-Silva, Paiva & Barbosa, 2009). Outro estudo realizado em serviço de saúde mental infantil no Brasil mostrou que 63.2% das crianças apresentaram sintomas de estresse, sendo que a maioria se encontrava na fase de alerta. Destas, 73.7% apresentaram estresse psicológico com componente depressivo (Lena, 2012).
Os estudos sobre o tema buscam compreender as associações entre o funcionamento familiar e os problemas de comportamento das crianças (Ma, Yao & Zhao, 2013). Os autores sugerem que existe uma relação bidirecional entre as variáveis funcionamento familiar, psicopatologia parental (depressão e abuso de álcool) e problemas de comportamento entre as crianças (Wang, Pan, Zhang & Yi, 2014; Burstein, Stanger & Dumenci, 2012). Lamela e Figueiredo (2016) avaliaram se o estado civil dos pais tinha influenciado a saúde mental das crianças e observaram que pais divorciados, que apresentaram mais sintomas de depressão, usaram mais punição física e estes fatores foram correlacionados com maior prejuízo para a saúde mental das crianças. Esse resultado confirma que a correlação de vários fatores familiares predispõe a criança a problemas comportamentais.
Pesquisas têm demonstrado a interdependência entre o subsistema conjugal e o subsistema parental (Bolze, 2016, Bergman, Cummings & Warmuth, 2016, Bigras & Paquette, 2000). Crianças que presenciaram conflitos conjugais com violência podem desenvolver problemas de comportamento exteriorizado e interiorizado (Keller, Cummings, Peterson, & Davies 2009). Boas, Dessen e Melchiori (2010) acreditam que a identificação dos processos familiares responsáveis pelo surgimento e pela manutenção dos conflitos conjugais, associados aos prejuízos para os filhos, pode ajudar na promoção da saúde mental e na boa qualidade de vida da família. Lindahl & Malik (2011) observaram que as crianças que presenciaram conflitos conjugais no ambiente familiar com altos níveis de disputa, afastamento e caos podem apresentar dificuldades emocionais, pois se sentem ameaçadas e culpadas. Os resultados desse estudo revelaram que a coesão familiar funcionou como moderador dos conflitos conjugais.
Essa perspectiva amplia a compreensão das relações familiares, pois engloba as tarefas da parentalidade e do subsistema conjugal, facilitando o aprendizado da criança para as habilidades de solidariedade, respeito e empatia. Neste sentido, é importante considerar o conceito de coparentalidade, definida como o envolvimento conjunto e recíproco dos pais/cuidadores na educação da criança, assim como o grau de mutualidade na tomada de decisões e orientações em relação à criança (Feinberg, 2003). A coparentalidade é uma das variáveis familiares relacionada com a saúde mental das crianças, dos pais e do funcionamento familiar. O estudo de metanálise dos autores Teubert e Pinquart (2010) verificou que a coparentalidade está relacionada com o ajustamento da criança. Os pesquisadores concluíram que a coparentalidade é um dos preditores do ajustamento psicológico das crianças. Um estudo com pais, na fase pós-divórcio conjugal, revelou associações significativamente positivas entre o conflito coparental e problemas de comportamento e sintomas de ansiedade, depressão e somatizaçâo dos filhos. As dimensões específicas da coparentalidade (suporte, cooperação e acordo coparentais) apresentaram significativamente associações positivas entre saúde mental global, autoestima e rendimento acadêmico das crianças (Lamela & Figueiredo 2016).
A literatura acima citada sugere que existe uma relação entre problemas de comportamento internalizados e externalizados, funcionamento familiar, coparentalidade e relacionamento conjugal, porém poucos estudos foram realizados com obj etivo de discutir este fenômeno (Boas et al. 2010; Keller et ai, 2009). Diante desse contexto, o presente estudo teve como objetivo geral identificar as associações entre as variáveis familiares, funcionamento familiar, coparentalidade e conflito conjugal, com os problemas emocionais e comportamentais de crianças de 5 a 11 anos, segundo a percepção das mães. Dessa forma, os resultados do presente estudo podem contribuir para a compreensão dos fatores familiares associados aos problemas de saúde mental infantil e auxiliar no desenvolvimento de programas de tratamento e prevenção que considerem a inserção da criança na dinâmica familiar.
Método
Trata-se de um estudo de investigação científica e tecnológica realizada com população clínica, com delineamento quantitativo, exploratorio, descritivo e transversal. As famílias foram recrutadas nas instituições que prestavam atendimento psicológico a crianças, sendo amostra de conveniência, de diferentes níveis socioeconómicos, em uma cidade da região Sul do Brasil.
Participantes
Para atender aos objetivos do presente estudo, optou-se por realizar entrevistas com mães de crianças diagnosticadas com problemas emocionais e comportamentais que estavam recebendo acompanhamento psicológico em Serviços de Saúde Pública de Referência, Centro de Atenção Psicossocial Infanto-Juvenil (CAPSi) e em uma Organização não governamental (ONG). Foram selecionadas duas instituições que realizavam atendimento psicológico com crianças na faixa etária de 5 a 11 anos. Dentre as famílias atendidas nas instituições, somente 50 mães preencheram os critérios de inclusão da pesquisa. Elas foram convidadas para responder a questões sobre o funcionamento familiar e a saúde mental de sua criança (entre 5 e 11 anos), denominada de criança focal. Os critérios para inclusão das famílias foram: a) serem famílias nucleares, monoparentais ou recasadas, b) a mãe biológica deveria residir com a criança que estava recebendo tratamento psicológico. Para compor uma amostra mais homogênea e diminuir as variáveis que pudessem interferir nas análises, optou-se por realizar entrevistas com as mães das crianças que não tinham diagnóstico de problemas neurológicos e deficiências intelectuais (autismo, esquizofrenia e outros). Um estudo aponta que as práticas parentais das famílias de crianças de desenvolvimento atípico, quando comparadas com famílias de crianças típicas, são diferentes, e o funcionamento familiar e o estresse parental influenciam esta prática (Minetto, 2010). Foram incluídas crianças com transtornos de Déficit de Atençâo/Hiperatividade, transtornos de comportamento disruptivo e transtornos emocionais.
Instrumentos
1. Entrevista para descrever a organização familiar. Construída com base no instrumento elaborado por Maria-Mengel e Linhares (2007), contém os seguintes itens: dados de identificação da família e da criança, caracterização sociodemográfica da família, além de perguntas sobre a rotina familiar e descrição dos motivos do acompanhamento psicológico. Na versão construída para esta pesquisa, foram elaboradas e acrescentadas duas questões: a primeira para identificar a percepção das mães sobre o relacionamento com seu filho e a segunda sobre a participação do pai na vida escolar, amizade e questões de saúde da criança (avaliadas por meio de uma escala Likert de 0 a 5 pontos).
2. Questionário de Capacidades e Dificuldades (SDQ) (Strengths and Difficulties Questonnaire). Construído por Goodman (1997), é utilizado para a avaliação da saúde mental de crianças. Os autores Woerner et al. (2004) descreveram resumidamente os dados psicométricos sobre a validade e fidedignidade do SDQ, no Brasil, definido pelo cálculo do alfa de Cronbach e pelo teste-reteste (amostra clínica de 17 participantes e intervalo médio de 20 dias entre as aplicações). Para o índice de consistência interna, o alfa de Cronbach apresentou, para as três versões utilizadas, valores próximos de .80 (valores para o escore total de dificuldades), sendo para o teste-reteste, o resultado de .79. Os resultados indicaram que o SDQ apresentou adequadas propriedades psicométricas aferidas para a população brasileira. Este instrumento é um questionário para rastreamento de problemas de saúde mental infantil, aplicado aos pais e professores. É constituído por 25 itens divididos em cinco áreas: a) problemas no comportamento pró-social, b) hiperatividade, c) problemas emocionais, d) de conduta e e) de relacionamento com colegas, com cinco itens em cada subescala. A soma de cada escala e a soma total permitem a classificação da criança em três categorias: desenvolvimento normal (DN), limítrofe (DL) ou anormal (DA). Para cada uma das cinco subescalas, a pontuação pode variar de 0 a 10, sendo a pontuação do escore total de dificuldades gerada pela soma dos resultados de todas as subescalas, exceto a de sociabilidade, podendo variar de 0 a 40 pontos. A nota de corte para o escore total de dificuldades, estabelecida para a população da Inglaterra, local de condução dos estudos originais de padronização do SDQ, foi de 17 para a versão dos pais e 16 para a versão dos professores. Na subescala comportamento pró-social, quanto maior for a pontuação, menor será a quantidade de queixas. Nas outras subescalas (hiperatividade, problemas emocionais, de conduta e de relacionamento), quanto maior a pontuação, maior o número de queixas.
3. A FACES IV. (Family Adaptability and Cohesion Evaluation Scales Escala Evolutiva de Avaliação da Adaptabilidade e Coesão Familiar) é um instrumento para a avaliação do funcionamento familiar (Olson & Gorall, 2003, Olson et al., 2011). É composta por 62 itens, divididos em três escalas: Inventário de Autopercepção Familiar, Dispositivo de Avaliação Familiar e Escala de Satisfação Familiar. Os itens são afirmações respondidas por meio de uma escala do tipo Likert de cinco pontos (1 = discordo totalmente; 5 = concordo totalmente) para as duas primeiras escalas do Inventário; e (1 = muito insatisfeito; 5 = extremamente satisfeito) para a terceira escala. No estudo de Minetto (2010), realizou-se a adaptação do instrumento, com tradução e retrotradução e adaptação semântica, e os índices de Cronbach das subescalas variaram de .79 a .84. Os índices encontrados sugerem que a FACES IV é um instrumento confiável para sua utilização em pesquisas no Brasil, embora não tenha sido validado para esta população.
4. Fontes de conflito entre o casal e na presença da criança - é uma das subescalas do Questionário de Harmonia Conjugal - Floreal. Que foi elaborado pelos pesquisadores do Laboratório de Psicologia da saúde, família e comunidade/UFSC-Brasil e pesquisadores canadenses. Este instrumento é composto por cinco dimensões, mas, na presente pesquisa, foi utilizada somente a quarta dimensão, por ser a única de interesse do presente estudo. Trata da avaliação das fontes de conflito conjugal e o conflito que acontece na presença da criança. Ela aborda 45 itens através de uma escala Likert que vai de 1 (nunca) a 5 (muito). Os itens investigam desentendimentos, discussões ou brigas, relacionados a questões familiares, religiosas, financeiras e também referentes à educação dos filhos, aos hábitos pessoais, sexuais, às agressões físicas e verbais, entre outros. Essa parte do instrumento foi inspirada no questionário americano O'Leary-Porter Scale (Overt Hostility), o qual investiga a frequência de diferentes tipos de conflitos interparentais na presença das crianças. O alpha de Cronbach do Floreal, já utilizado em amostra brasileira, foi .88, o que indica um bom coeficiente de confiabilidade na correlação entre as respostas (Bolze, 2011).
5. Escala de Relação Coparental (ERC). Construída por Feinberg, Brown e Kan (2012), é um instrumento de medida que tem como base o Modelo Teórico da Coparentalidade de Feinberg (2003). É constituída por 35 itens que avaliam os seguintes componentes: acordo coparental; aproximação coparental; exposição da criança ao conflito; suporte e sabotagem coparental; aprovação/ suporte à parentalidade do parceiro e divisão do trabalho relacionado à criança. O estudo psicométrico da Escala demonstrou excelente consistência interna, com alfas de Cronbach entre .91 e .94, para a versão completa (de 35 itens); e .81 e .89 para a versão reduzida da escala (de 14 itens). Foi constatada uma excelente correlação entre as versões completa e reduzida, com uma correlação de .97 para as mães e .94 para os pais. De forma geral, os resultados indicaram que o instrumento tem boas propriedades psicométricas: consistência interna e correlação entre as versões, forte estabilidade e validade de constructo (Feinberg et al., 2012).
6.Inventário de percepção parental (Parent Perception Inventory). Construído por Hazzard, Christensen e Margolin, (1983), este instrumento possui 20 questões que descrevem as práticas educativas e é composto por duas dimensões: positiva e negativa. Avaliado por meio de uma escala Likert de pontuação 0 a 5 (0 nada, 1 pouco, 2 regular, 3 frequentemente, 4 muito e 5 bastante). A dimensão positiva inclui os seguintes comportamentos: reforço positivo, estabelecimento de diálogo, envolvimento da criança nas decisões, tempo que os pais passam junto com o filho, expressão de afeto, elogios e atitudes de cuidado. A dimensão negativa é composta de: remoção de privilégio, fazer críticas, punição física, negligência, gritar, uso de ameaça, irritar e ignorar. Os autores Souza, Pinto e Carvalho (2014) fizeram um estudo de adaptação com a versão brasileira, e a análise preliminar do instrumento teve resultados que atenderam em parte aos critérios que conferem confiabilidade ao mesmo, apesar de a amostra ser pequena: 50 pais e 50 mães, todos os itens positivos foram significativamente correlacionados (mãe e pai), com correlações variando de .4 a .83, todos os itens negativos também (mãe e pai), com correlações variando de .34 a .72. O alfa de Cronbach também foi calculado para cada uma das subescalas: positiva mãe: .84; negativa mãe: .78; positiva pai: .88; negativa pai: ,80. Por outro lado, há de se refletir sobre a utilidade do referido instrumento, considerando que é de fácil aplicação e que compreende as dimensões de promoção e punição/ inibição de comportamentos, utilizadas por pais de crianças na faixa etária correspondente à presente pesquisa. Para avaliar as práticas educativas no presente estudo, foram incluídos três itens da dimensão positiva e quatro da dimensão negativa. Estas questões foram escolhidas para contemplar a variável "práticas educativas" que não estava presente nos outros instrumentos e optou-se por escolher os itens que estavam mais relacionados com os objetivos do estudo.
Procedimento
As mães foram selecionadas a partir dos prontuários de atendimento dos serviços de saúde, considerando os seguintes critérios: ter mais de 18 anos e deveriam apresentar condições gerais de saúde física e mental que lhes permitissem fornecer informações livremente e com capacidade para compreender a natureza da pesquisa e dos procedimentos. Posteriormente, foram contactadas por telefone para agendar as entrevistas que eram realizadas geralmente nos horários em que a criança estava recebendo atendimento psicológico. Para iniciar a entrevista, era lido o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido que a mãe assinava. Posteriormente foram aplicados os instrumentos, na seguinte ordem: Entrevista de Identificação Familiar, Questionário de Capacidades e Dificuldades (SDQ), Instrumento para avaliar o funcionamento familiar (FACES IV), Subescala Fontes de conflito na presença da criança do Questionário Floreai, Escala da Relação Coparental e Inventário de Percepção Parental. Todos os instrumentos foram aplicados por meio de entrevista, para facilitar a compreensão, embora as mães fossem alfabetizadas. A coleta de dados ocorreu conforme disponibilidade dos participantes.
Análise dos Dados
Os dados foram analisados através do pacote estatístico Statistical Package for Social Sciences-SPSS 21.0. A ERC, o SDQ, a subescala do Questionário Floreai e a FACES IV foram analisados conforme as normas padronizadas pelos autores dos instrumentos. Os demais dados, da Entrevista de Identificação Familiar e o Inventário de Percepção Parental, foram analisados através de análise estatística descritiva para o estudo da distribuição de frequências e de porcentagens para as variáveis categóricas. As variáveis contínuas (dados sociodemográficas, SDQ, FACES IV, Floreai e ECR) foram analisadas através de médias e desvio-padrâo. Posteriormente, foram elaboradas as análises correlacionais, por meio de estatística não paramétrica, usando o teste de Spearman (com nível de significância p < 0,05), optou-se pelo teste não paramétrico devido aos dados de algumas variáveis não apresentarem uma distribuição normal, e a amostra ser pequena e heterogênea (Dancey & Reidy 2006).
Considerações Eticas
O projeto deste estudo teve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, da universidade à qual o estudo está vinculado, sob o parecer número 987.433, em março de 2015. O consentimento informado foi obtido de todos os participantes deste estudo. Os autores declaram que não têm interesses conflitantes.
Resultados
A seguir, apresentam-se as informações coletadas na entrevista que teve como objetivo descrever a organização familiar. Quanto à escolaridade, 13 mães tinham ensino médio completo, 12, ensino fundamental incompleto, sete, ensino médio incompleto, cinco tinham ensino fundamental completado, sete iniciaram o ensino superior, mas não terminaram, e somente quatro tinham o ensino superior completo, uma fez um curso de pós-graduação e uma tinha o primário incompleto. Muitas exerciam atividade remunerada, 30 delas, e a renda familiar média era de R$ 2.359,90, sendo valor mínimo de R$ 788,00 e máximo de R$ 10.000,00 (DP= R$ 1.528,2) e tinham, em média, dois filhos (DP=.9). Com idade mínima de 24 anos e máxima de 49 anos (M = 35.2 anos, DP=6.2) .
Com relação à composição dessas famílias: 25 eram do tipo nuclear, 19 eram de família monoparental e 6 eram recasadas. As mães relataram que a participação do pai na educação dos filhos foi pequena (M=2.5, DP=2.0). E avaliaram o relacionamento com seu filho como sendo ótimo (M=4.5, DP=1). Os resultados do Inventário de Percepção Parental, na dimensão práticas educativas negativas, variaram muito, sendo a pontuação mínima de 0 e máximo 4, (M= 1.7, DP=1), demonstraram que algumas mães aplicavam poucos castigos físicos, gritavam, ou davam palmadas, porém outras citaram que aplicavam castigo e faziam uso da palmada. E, na dimensão práticas educativas positivas, os dados apontaram que a maioria das mães expressava carinho, elogio e ouvia seus filhos (M=4.1, DP= .9).A maioria das crianças era do gênero masculino, 34, e a média de idade era de 8,2 (M=8, DP= 1.7). Segundo relato das mães, os motivos do encaminhamento das crianças para atendimento psicológico, com maior frequência de ocorrência, foram: agressividade/falta de limites (n.22) e dificuldades emocionais e ansiedade (n.22) e sintomas de hiperatividade (n.6). Para verificar a distribuição das crianças, segundo os indicadores da escala que avaliam problemas de comportamento/emocional e comportamento pró-social (SDQ), elas foram divididas entre o grupo clínico, aquelas que apresentavam mais sinais de problemas emocionais e de comportamento e aquelas com menos sinais estavam no grupo não clínico (Tabela 1).
Tabela 1. Frequência e porcentagem de ocorrência de problemas de saúde mental infantil, segundo a pontuação do SDQ
Pode-se constatar que, segundo a percepção das mães, 35 das crianças que estavam recebendo atendimento psicológico apresentaram indicadores de sintomas de problemas de saúde mental, classificados no grupo clínico. A maioria apresentou sintomas de hiperatividade (n.37), problemas de conduta (n.30), problemas emocionais (n.22) e de relacionamento com pares (n. 15). As crianças do grupo clínico apresentaram mais sintomas de hiperatividade e problemas de conduta. Na dimensão pró-social, que avalia as habilidades sociais, a maioria (n.44) obteve bom índice, e somente 6 foram classificadas nos índices clínicos. A avaliação do funcionamento familiar, realizado através da Escala de Avaliação de adaptação e coesão familiar, será apresentada na Tabela 2.
Tabela 2. Média e desvio-padrão das respostas das mães referentes ao Funcionamento Familiar (FACES IV)
As análises apontaram altos níveis nas subescalas coesão (M=3.7, DP=0.7) e flexibilidade equilibrada (M=3.3, DP=0.5). Para as subescalas, desequilibrada, desengajada e caótica, os valores estão dentro da média (M=2.5, DP=0.6), e as sub-escalas rígida (M=3.0, DP=0.5) e emaranhada (M=2.9, DP=0.6) apresentaram escores altos. Essas famílias têm uma tendência para funcionamento rígido e emaranhado, segundo a percepção das mães. Durante a aplicação da escala FACES IV. ao avaliar o seu relacionamento familiar, a maioria das mães considerou a sua relação com seus filhos e com sua família de origem (principalmente com a própria mãe), mesmo aquelas que estavam convivendo com o cônjuge. Não faço nada sem a opinião da minha mãe. Ah, eu sou muito protetora... (M.22). Me sinto abandonada se meus filhos estão longe de mim (M.50). Minha mãe quer mandar em tudo (M.49). Outros comentários das mães reforçaram esta afirmação, pois afirmaram ter dificuldades para dialogar com cônjuge: Quando o marido chega em casa, muda tudo, não dá para conversar perto dele (M48). Ele não concorda com nada, ele é desligado (M.37). Eu sobrevivo e aguento tudo (referindo aos conflitos com o marido) pelos meus filhos (M.46). Estes relatos denotam que a mãe tem uma relação muito próxima com o filho, e provavelmente o pai tem uma participação periférica na família, não sendo incluído na relação familiar.
A qualidade do relacionamento conjugal é um fator importante para o bom funcionamento familiar, este aspecto foi avaliado pelo instrumento Fontes de conflito entre o casal e na presença da criança (subescala do Floreai). Os resultados evidenciaram a ocorrência de conflito conjugal e de conflito na presença da criança. As médias dos escores de cada dimensão: conflito conjugal (M=2.0, DP=0.6) e exposição da criança ao conflito (M=1.4, DP=0.6) demonstraram a existência de conflitos conjugais em ambas as dimensões, porém em níveis baixos. Para identificar a presença de agressão na relação conjugal, foram computadas as questões que avaliaram especificamente a presença de violência na relação conjugal, citada em duas questões: a primeira sobre a presença de hostilidade física e a segunda da hostilidade verbal. Observou-se que a hostilidade física ocorreu em 34% (n. 17) dos casais, e todas as crianças presenciaram este evento. Na segunda questão, 70% (n.35) dos casais, segundo percepção das mães, vivenciaram hostilidade verbal e 80% (n.28) das crianças a presenciaram. As mães também afirmaram que 60% (n.21) destas crianças apresentaram sinais de problemas comportamentais.
Os resultados da escala da relação coparental apontaram que a mãe tem uma percepção positiva do seu companheiro nas tarefas educacionais, ela percebe que existe proximidade, suporte e acordo nas decisões, porém citou dificuldades na divisão de tarefas (Tabela 3).
Tabela 3. Avaliação da Relação Coparental apresentada em média e desvio-padrão
Os dados das dimensões negativas da coparentalidade, isto é, exposição ao conflito (M= 1.0, DP=1.8) e sabotagem (M=1.4, DP=1.5) apresentaram escores baixos, mas apontando que as respostas das mães variaram muito nestas duas dimensões. Nas demais dimensões positivas, proximidade (M=3.3, DP=1.8), endossar parentalidade (M=3.3, DP= 1.1) e suporte (M=3.1, DP= 1.5), os escores apresentaram resultados acima da média. O acordo coparental (M=2.8, DP=1.6), a divisão de tarefas (M=2.6, DP=1.6), exposição aos conflitos (M=1.7, DP=1.8) e a sabotagem (M=1.7, DP=1.5) apresentaram escores abaixo da média.
Para verificar se as variáveis dos aspectos familiares têm repercutido na saúde mental das crianças, foi feita análise correlacionai dos escores totais e das sub-escalas do SDQ com os escores totais das escalas que avaliaram práticas educativas, participação paterna, relacionamento mâe-criança, funcionamento familiar, relacionamento conjugal e coparentalidade (Tabela 4).
Tabela 4. Correlação entre os indicadores de sintomas de problemas de saúde mental infantil e as variáveis dos aspectos familiares
As famílias do tipo emaranhado, ou seja, aquelas que apresentam envolvimento emocional fusionado possuem crianças com mais problemas de saúde mental (r=0.440**), sendo mais sintomas de problemas de conduta (r=.328*) e de relacionamento com pares (r=.285*). Os sintomas de problemas emocionais foram correlacionados positivamente com as práticas educativas negativas (0.294*), e negativamente com o bom relacionamento mâe-criança (r=-.314*), ou sej a, quanto menor a frequência de práticas educativas negativas e melhor a relação mâe-criança, menos sinais de problemas emocionais a criança apresentou. As práticas educativas negativas (uso de palmadas, críticas, ignorar e gritar/berrar com a criança) foram ainda relacionadas com sintomas de hiperatividade (r=.286*) e problemas de conduta (r=.377**). O tamanho da amostra provavelmente interferiu nas análises, apresentando baixas correlações em alguns aspectos.
Discussão
A pesquisa realizada no âmbito da psicopatologia infantil tem pontuado o papel do ambiente familiar, no qual a criança se desenvolve, e as interações que este estabelece, como incentivadores ou limitadores do processo de desenvolvimento da saúde mental infantil. Os objetivos do presente estudo foram descrever a percepção das mães de crianças de 5 a 11 anos sobre funcionamento familiar, relacionamento conjugal, coparentalidade e os problemas de comportamento e emocionais na infância e identificar as associações entre as variáveis familiares e os problemas comportamentais das crianças. Segundo a percepção das mães, essas famílias têm uma tendência para funcionamento rígido e emaranhado. As famílias do tipo emaranhado, aquelas que apresentam envolvimento emocional fusionado, foram associadas com o grupo de crianças com mais problemas de saúde mental, especificamente para os sintomas de problemas de conduta e de relacionamento com pares. Uma hipótese que se levantou, com base nas análises dos relatos das mães, é que este tipo de funcionamento emaranhado acontece entre alguns membros da família, mães com sua família de origem e com seu filho, por exemplo. Esta dinâmica familiar coloca o pai em posição periférica e, provavelmente, dificulta a participação paterna nas questões familiares e educacionais. O emaranhado de uma mãe com os filhos está diretamente relacionado com a distância emocional entre ela e o marido (Nichols & Schwartz, 2007). Quanto menos ela receber atenção do marido mais ela precisará receber dos filhos e quanto mais envolvida com os filhos, menos tempo e energia terá para o marido. Minuchin (1990) aponta que esta forma de funcionamento da família leva ao comprometimento da diferenciação e do exercício da autonomia de seus membros. Os subsistemas emaranhados têm fronteiras difusas, transmitem um sentimento de apoio maior a custo da independência e da autonomia (Nichols & Schwartz, 2007). Pais emaranhados são amorosos e atenciosos, seus filhos tendem a ser dependentes e podem ter dificuldades de se relacionar com pessoas externas à família. Para Minuchin (1990), um sinal de funcionamento familiar "saudável" é o fato de o casal conseguir cumprir a tarefa de separar-se da sua família de origem e negociar uma relação diferente com pais e parentes. E para que isso aconteça, o casal deve estar comprometido com seu matrimônio, ou seja, construir estratégias de resolução de conflitos, e as famílias de origem devem aceitar e apoiar esse movimento do casal.
Além disso, esse resultado sugere que as mães estavam mais ligadas à sua família de origem e aos seus filhos, indicando a existência de um conflito não revelado entre o casal. As análises do relacionamento conjugal apontaram resultados abaixo da média para a presença de conflito conjugal, porém ao avaliar as questões sobre a existência de hostilidade física e verbal, 17 das mães afirmaram que já vivenciaram situações de agressão física e 35, de agressão verbal. Pode-se hipotetizar que o resultado referente ao baixo nível de conflito conjugal ocorreu devido ao fato de algumas mulheres terem revelado evitar discutir para não gerar desconforto aos filhos e até mesmo para não aumentar a violência do marido. Uma delas relatou que seu marido era muito agressivo, então, evitava discutir: - Não adianta falar, melhor não discutir. E bom evitar discussão para não dar briga, penso nas crianças. A participante relatou que antes tentava discutir, o que resultava em agressões físicas da parte dele na frente da criança e esta ficava muito nervosa. Alguns casais utilizam evitaçâo para manter a harmonia conjugal, segundo Bolze, Crepaldi, Schmidt e Vieira (2013). Estes autores observaram que as mulheres, mais do que os homens, utilizam reciprocidade negativa e evitaçâo. Atualmente, completou a mãe: Quando percebo que o marido está muito nervoso vou para casa do pai e deixo os filhos lá com os avós ". Mais uma vez aparece a busca de apoio na família de origem. As mães se sentem desprotegidas e não sabem como lidar com estes conflitos, assim recorrem aos próprios pais, buscando suporte emocional e ajuda no cuidado dos filhos.
As médias dos escores totais demonstraram que a criança teve baixa exposição ao conflito conjugal. Mas, ao avaliar a porcentagem, observa-se que, dentre 28 das crianças que presenciaram hostilidade verbal entre os pais, 21 apresentaram indicadores de problemas de saúde mental. As crianças que presenciam conflito conjugal destrutivo entre os pais e expressão de afetos parentais negativos têm mais chance de apresentar comportamento agressivo (Keller et al., 2009). Para Pires, Silva e Assis (2012), as crianças são atingidas emocionalmente, ao testemunhar a violência na família. Crianças nessa situação tendem a apresentar mais comumente comportamentos agressivos e sintomas de TDAH. A agressão verbal praticada pelos pais sobre a criança mostrou-se associada ao TDAH. As crianças que vivenciam situações psicológicas adversas, no contexto doméstico, podem, ainda, apresentar dificuldades intelectuais, de linguagem, de atenção e outras em funções cognitivas (Oliveira, Scivoleto & Cunha, 2010), além de dificuldades emocionais, pois se sentem ameaçadas e culpadas (Lindahl & Malik 2011).
Cummings e Davies (2010) encontraram uma interligação entre conflito conjugal, psicopatologia parental e ajustamento da criança, apontando, assim, para a importância do desenvolvimento de mais pesquisas sobre os problemas de comportamentos nas crianças, que incluam uma perspectiva sistêmica e interdisciplinar na análise dos fatores de risco familiares. A perspectiva dos estudos atuais sobre relações familiares tem como objetivo identificar os processos responsáveis pelo surgimento e manutenção dos conflitos conjugais, associados aos prejuízos para o desenvolvimento dos filhos (Cummings e Davies, 2010; Bergman, Cummings & Warmuth, 2016).
Uma boa relação conjugal proporciona ao casal a satisfação das necessidades de intimidade e também oferece suporte emocional e auxílio na educação dos filhos (Bergman, Cummings & Warmuth, 2016). Quando existem conflitos na relação conjugal, estes podem ser transferidos para a relação coparental e interferir negativamente na relação pais/filho e na saúde mental da criança. Pesquisas têm demonstrado a interdependência entre o subsistema conjugal e o subsistema parental (Bigras & Paquette 2000). Boas et al. (2010) observaram poucos trabalhos publicados com foco nas implicações dos conflitos conjugais para o desenvolvimento dos filhos e concluíram que é necessário reunir resultados de pesquisas brasileiras, buscando compreender o funcionamento destas famílias e as implicações dos conflitos conjugais para o desenvolvimento das crianças.
O estudo também investigou a associação entre problemas de saúde mental infantil e a relação mãe-criança e com a participação paterna nas atividades do dia a dia. As análises correlacionais apontaram que sintomas emocionais foram associados negativamente com a relação mãe-criança, mas, a participação paterna, segundo a percepção da mãe, não foi correlacionada com nenhum indicador de problemas emocionais e comportamentais da criança. A relação positiva mãe-criança pode ser considerada como fator de proteção para o desenvolvimento da criança. Mas é importante avaliar se outras variáveis estão mediando este resultado.
As dimensões da coparentalidade, acordo e divisão das tarefas apresentaram escores abaixo da média, revelando que a mãe e seu companheiro têm diferentes ideias sobre a forma como deveriam criar o seu filho e não conseguem dividir as tarefas educacionais, o que indica relação conflitiva entre eles na relação coparental, conforme ilustra o relato a seguir: Ele é mais rígido e eu sou mais protetora; aí ele quer que eu seja igual a ele. Por outro lado, nas dimensões positivas, a mãe percebe que seu companheiro oferece suporte nas tarefas educacionais. Assim, ela tende a valorizar a participação do esposo nas questões educacionais e ainda relata que existe proximidade na relação coparental. Porém, os dados da relação coparental não apresentaram associações com os problemas de saúde mental infantil, mas as dimensões que avaliaram a exposição da criança ao conflito conjugal e à sabotagem foram muito dispersas, revelando que algumas participantes avaliaram este aspecto positivamente e outras, negativamente, sendo que esta distribuição interferiu nas análises.
As práticas educativas negativas foram relacionadas com mais sintomas de hiperatividade, emocionais e com mais problemas de conduta. Estes resultados coadunam-se com os de Alvarenga, Magalhães e Gomes (2012) que observaram, na população de crianças pré-escolares, que a punição física foi relacionada aos problemas de comportamento externalizados. Alguns dos fatores de risco mais estudados, relacionados a problemas de saúde mental e de comportamento na infância, são as práticas educativas parentais inadequadas (Bolsoni-Silva, Loureiro & Marturano, 2011). Embora seja importante observar que, na presente pesquisa, as correlações foram baixas, o que indica que outras variáveis podem estar influenciando este resultado. Por exemplo, estudo apontou que o estresse na relação pais-filhos foi preditor para comportamentos problemáticos e para utilização de mais práticas disciplinares serveras (Solís-Cámara, Medina Cuevas, & Díaz Romero, 2015).
O estudo mostrou a importância dos aspectos das relações familiares para a saúde mental das crianças. Uma das características do ambiente familiar saudável é aquela que favorece a qualidade da relação conjugal e, consequentemente, está interligada com a parentalidade, facilitando o desenvolvimento da criança. A relação conjugal e a coparentalidade também foram descritas, nesta pesquisa, como variáveis que afetaram, ainda que indiretamente, a saúde mental das crianças. Desta forma, as instituições que prestam atendimento às crianças que apresentam problemas emocionais e comportamentais podem avaliar o funcionamento familiar, as práticas parentais e a coparentalidade para, posteriormente, elaborar estratégias de atendimento psicológico direcionado à construção de possibilidades para o acordo, o suporte e a proximidade cooperante entre os pais, sugerindo que os profissionais de saúde possam trabalhar com os pais as dimensões da coparentalidade e do relacionamento conjugal. A diversidade dos fatores familiares, envolvidos nas dificuldades comportamentais e emocionais das crianças, foi percebida neste estudo, ficando evidente nos escores das escalas das práticas educativas negativas e nas dimensões negativas da coparentalidade (exposição de conflito e sabotagem). Sugere-se a realização de outros estudos com delineamento de estudo de caso, pois este poderia verificar mais especificamente estas relações e aprofundar as análises realizadas.
Dentre as limitações do estudo, relacionadas às análises pretendidas e ao esclarecimento das associações entre as variáveis, pode-se mencionar: o tamanho da amostra, a utilização de instrumentos adaptados, amostra por conveniência, mas não validados para a população brasileira, como a FACES IV, além das caraterísticas heterogêneas das famílias. Sugerem-se, ainda, novos estudos que possam investigar se estes resultados aparecem nos outros tipos de arranjos familiares, referidos aos serviços de saúde da comunidade, bem como estudos comparativos entre a percepção paterna e materna, sobre as variáveis aqui abordadas. A identificação dos fatores familiares associados aos problemas emocionais e comportamentais da criança pode favorecer a implantação de intervenção com esta população. Autores (Solís-Cámara, Medina Cuevas, & Díaz Romero, 2015; Rea-Amaya, Acle Tomasini, Rueda & Méndez, 2014) observaram que pais de crianças com problemas de comportamento que recebem orientações sobre questões educacionais diminuíram a utilização de prática parentais severas. Um programa de intervenção familiar que contemple o aprendizado de práticas educativas positivas, a coparentalidade positiva, resolução de conflitos conjugais e construa estratégias para facilitar a participação do pai nas questões educacionais e que promova relações familiares mais flexíveis e coesas pode prevenir problemas de saúde mental infantil.
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